Por Clayton NETZ, Ralphe MANZONI Jr. e Tatiana BAUTZER
Ao longo de seus 11 anos como presidente da subsidiária
brasileira da Nestlé, o executivo paulista Ivan Fábio Zurita, 59 anos,
trouxe melhora inegável nos resultados da companhia, na qual começou
como estagiário em 1972 e foi seu único emprego com carteira assinada.
Durante sua gestão – Zurita foi o mais longevo dos últimos seis
presidentes da companhia Suíça, no Brasil – a gigante dos alimentos
quadruplicou de tamanho, passando de um faturamento de R$ 4,8 bilhões
para R$ 20,5 bilhões. No período em que dirigiu a filial da maior
empresa de alimentos do mundo, o Brasil saltou de sétimo para o segundo
maior mercado em volume de vendas e receitas entre os 83 países em que a
multinacional atua.
Leite derramado: Zurita foi o mais longevo presidente da filial brasileira
da Nestlé. Agora, terá tempo para se dedicar aos seus projetos agropecuários.
Com 121 marcas de produtos alimentícios no País – que vão de
chocolates, iogurtes, biscoitos e papinhas de bebê a ração animal, cafés
e água, a Nestlé foi uma das primeiras empresas de grande porte a
perceber o potencial das classes C, D e E no País. Os produtos da
Nestlé, que no início dos anos 2000 estavam presentes em 70% dos lares
brasileiros, hoje são encontrados em 99% das residências. O aumento
dessa penetração deve-se à estratégia desenhada por Zurita visando à
população baixa renda e ao interior do País. Em 2003, o executivo criou
diretorias específicas e idealizou uma rede de vendas de porta em porta,
no estilo consagrado por empresas de cosméticos como a Avon e a Natura,
que hoje conta com mais de dez mil revendedores e 273
microdistribuidores em 20 Estados.
Sozinho, o núcleo de produtos destinados aos consumidores
emergentes foi responsável por um ingresso adicional de R$ 1,2 bilhão
aos cofres da companhia, no ano passado. Na esteira desses resultados,
Zurita foi rapidamente guindado à condição de superstar entre os
executivos brasileiros. Cortejado, reverenciado e temido, ocupou
sistematicamente as melhores posições na lista dos profissionais mais
valorizados do mercado brasileiro. Em 2005, por exemplo, foi escolhido o
Empreendedor do Ano pela DINHEIRO como reconhecimento por seu trabalho à
frente da Nestlé. Por isso mesmo, caiu como uma bomba nos meios
empresariais a notícia de que a relação de quatro décadas entre Zurita e
a Nestlé fora quebrada de maneira inesperada às vésperas do feriado de
1º de Maio.
Na sexta-feira 27 de abril, a multinacional anunciou sua saída da
presidência da subsidiária, informação a quem nem mesmo seus mais
íntimos amigos tiveram acesso antecipado. A partir de julho, o executivo
será substituído pelo guatemalteco Juan Carlos Marroquín Cuesta, que
hoje dirige a filial do México, exatamente o último posto ocupado por
Zurita no Exterior, antes de ser repatriado para o Brasil, no ano 2001.
Zurita passará à presidência do conselho consultivo da Nestlé no Brasil,
que se reúne, em média, duas vezes por ano. Ao lado de Jacques
Marcovitch, ex-reitor da Universidade de São Paulo, será responsável por
recrutar dois novos conselheiros para substituir o empresário Roberto
Bornhausen, ex-presidente do Unibanco, e o economista Luis Paulo
Rosenberg, que deixaram seus assentos recentemente.
Oficialmente, Zurita afirma que sua saída estava sendo negociada
com o CEO da Nestlé, o belga Paul Bulcke. “Não fui surpreendido de forma
alguma”, disse Zurita, em entrevista exclusiva à DINHEIRO (leia mais ao
final da reportagem). Fontes próximas ao executivo, no entanto, pintam
outro quadro. Três diferentes interlocutores afirmam à DINHEIRO que
Zurita esperava sair só em 2014. Recentemente, um diretor fora até a sua
sala comunicar-lhe que desejava aposentar-se. Foi demovido pela
argumentação do chefe de que ele deveria ficar pelo menos até a Copa do
Mundo, em 2014, que será realizada no Brasil, evento badalado para o
qual planejava grandes ações de marketing. A Nestlé, atualmente, é um
dos patrocinadores da Seleção Brasileira.
Esse argumento foi utilizado pelo menos mais uma vez por Zurita
para justificar seu plano de deixar a companhia somente daqui a dois
anos. “Seria fechar com chave de ouro sua gestão”, diz um ex-diretor da
Nestlé. No dia em que foi comunicado que deixaria o comando da Nestlé no
Brasil, Zurita viajou para a sede da companhia, em Vevey, na Suíça,
para negociar os detalhes de sua saída. Um dos motivos que têm
sido apontados como determinante para sua queda foi a alta exposição de
seus negócios privados, como a AgroZurita, uma empresa de
agropecuária, dona de 8,5 mil hectares, com 30 fazendas em São Paulo e
Minas Gerais e forte atuação na pecuária, com leilões de gados
frequentados por astros e estrelas da tevê e da música.
A matriz não absorveu inteiramente a exposição pública de Zurita,
que contrastava com o comportamento discreto e avesso aos holofotes dos
homens de negócios suíços, em geral, e com os executivos da Nestlé, em
particular. “A mistura do público com o privado causava muito
desconforto”, diz o mesmo ex-diretor. Apesar desse incômodo, a
explicação para que não tenha sido adotada uma providência antes, e que a
situação tenha sido tolerada por tanto tempo, tem uma forte dose de
pragmatismo helvético. “Não chamavam a atenção ou proibiam as atividades
particulares simplesmente porque o homem estava entregando resultado”,
afirma a fonte. Na verdade, a matriz até que ensaiou fazer alguma coisa.
Em 2005, um executivo com uma pasta recheada de cópias de reportagens
da imprensa brasileira falando sobre os leilões de gado e as atividades
da AgroZurita desembarcou no Brasil.
Queria explicações sobre o que estava acontecendo. Mas, justamente
porque os números da filial brasileira eram considerados bons, o assunto
não foi adiante. A entrada de Zurita no negócio agropecuário, no
entanto, não apenas foi feita às claras como contou com a ajuda da
própria Nestlé. O austríaco Peter Brabeck, na época CEO mundial e atual
presidente do conselho de administração, aprovou um empréstimo a Zurita,
ainda quando este presidia a filial do México, para complementar o
valor da aquisição de uma fazenda em Araras,terra natal do executivo. O
empréstimo foi reembolsado integralmente à companhia, por meio de opções
de ações que o executivo detinha, além de bônus e premiações que
recebia pelo seu desempenho. Por coincidência, Brabeck, que lhe deu o
empurrão inicial, também está de saída da Nestlé.
Ele trocará o cargo na companhia suíça pela mesma posição na
empresa que controla a Fórmula 1, a Delta Topco, segundo reportagem do
jornal britânico Financial Times. Tanto prestígio assim perante aos seus
chefes não se devia apenas ao bom desempenho na operação brasileira.
Zurita tem uma trajetória exemplar na Nestlé, empresa que faz parte de
sua vida desde o berço. Araras, onde nasceu, abriga o primeiro complexo
fabril da Nestlé, desde 1921 – entre suas recordações de infância, ele
costuma mencionar o cheiro de chocolate que invadia a cidade. Estudante
de economia pela Universidade Mackenzie, começou a trabalhar na empresa
como estagiário aos 17 anos. Ao longo de sua carreira, presidiu as
subsidiárias do Chile, da Argentina, do Panamá e do México.
Em 2001, voltou ao Brasil, substituindo Ricardo Gonçalves, que nos
quatro anos anteriores havia tentado derrubar os feudos que existiam na
Nestlé. Na época, as unidades de negócio da companhia tinham autonomia
considerada excessiva. Zurita aprofundou essa ação, mas de uma forma
diferente. “Ele optou pela centralização excessiva, reduzindo o peso dos
responsáveis pelas áreas de negócios”, diz um ex-diretor da Nestlé.
Resultado: acumulou poder. O melhor exemplo da centralização é
que Zurita concentrou a responsabilidade pela verba de marketing da
Nestlé, que chegou a R$ 500 milhões. “Ele passou a se sentir à
vontade para gastar onde achava melhor esse dinheiro”, diz um
publicitário que trabalhou para a Nestlé. Muitas vezes, as agências da
multinacional suíça não entendiam por que Zurita resolvia fazer
determinados gastos ou patrocínios.
Amigo de fé: a Nestlé, de Zurita, patrocina o cantor Roberto Carlos,
que é um importante cliente da AgroZurita.
“Com frequência, havia gastos que não faziam sentido”, afirma o
publicitário. “Ou que faziam sentido se fossem aplicados em outros
projetos.” Uma empresa de promoção da família chegou a angariar grandes
verbas de patrocínio da Nestlé para eventos como a competição hípica
Athina Onassis Horse Show. Com a influência de Zurita, a empresa
rapidamente conquistou vários clientes no setor de eventos. Ao mesmo
tempo que sua carreira atingia o ápice na Nestlé, Zurita tornou-se um
empresário bem-sucedido do setor agropecuário. Aos poucos, aflorou outra
vertente da personalidade de Zurita. Ele se transformou em um promotor
de eventos em ascensão e um personagem onipresente nas publicações
voltadas ao mundo dos famosos. Dono de mais de mil cabeças de gado da
raça nelore, os concorridos e badalados leilões que promove arrecadam
milhões de reais e são frequentados por celebridades.
“Um número expressivo de compradores do gado era gente patrocinada
pela Nestlé, como Roberto Carlos, Ratinho, Ana Maria Braga, Faustão e
Gugu Liberato”, diz uma fonte próxima a Zurita. Um de seus principais
clientes nesses leilões é o cantor Roberto Carlos, que recebeu no ano
passado R$ 12 milhões em patrocínio, como parte da comemoração dos 90
anos da Nestlé no Brasil, segundo estimativas do mercado publicitário.
Com isso, a Nestlé tem o direito de estampar sua marca em material
promocional de shows e fazer promoções, como a que sorteou 50
calhambeques. Em outubro do ano passado, por exemplo, o Rei arrematou,
por R$ 1 milhão, 50% do Touro Rajat FIV. Em 2005, o cantor já havia
comprado o touro King of Africa, por R$ 800 mil.
Questionado por DINHEIRO sobre essa relação de patrocínio a
celebridades que são seus clientes na AgroZurita, o executivo respondeu:
“Não há nenhuma relação dos patrocínios da Nestlé com o interesse
particular desses artistas em, eventualmente, investir ou participar dos
leilões promovidos pela AgroZurita.” Um fato que chama a atenção são os
preços alcançados nessas vendas de gado. Desde 2008, em apenas cinco
leilões de nelore, Zurita já arrecadou R$ 39,8 milhões, vendendo 128
animais, segundo dados públicos e veiculados por revistas
especializadas. O preço médio dos animais de genética
selecionada vendidos pela AgroZurita foi de R$ 311 mil, um valor
considerado muito alto por leiloeiros do chamado ‘gado de elite’. O maior valor alcançado foi de R$ 2,1 milhões.
Dupla dinâmica: Brabeck (à esq.), chairman da Nestlé, ajudou Zurita a comprar a primeira fazenda.
Bulcke, atual CEO, aposta na rentabilidade nos países emergentes.
“É impossível rentabilizar um reprodutor por este preço”, afirma um
dos maiores leiloeiros de gado do País. Animais excepcionais
normalmente são vendidos por até R$ 200 mil a grandes pecuaristas,
interessados em melhorar a qualidade de seu plantel de corte. A
rentabilidade ocorre pelo aumento no peso médio do rebanho propiciado
pela melhora genética. “Esses preços são irreais”, afirma o leiloeiro.
Nacionalmente, a média de preço de matrizes nelore com boa qualidade
genética é de R$ 15 mil. Outro fator que teria arranhado a imagem de
Zurita junto à matriz ocorreu por conta da disputa na Justiça com o
antigo banco Schahin (vendido para o mineiro BMG, no ano passado) em
torno da dívida de R$ 7 milhões contraída pelo executivo em 2004 para
compra de um imóvel.
Zurita não quitou o empréstimo, sofreu uma ação de execução que se
arrasta na Justiça desde 2007, com múltiplos recursos a tribunais
superiores. O valor atualizado da dívida supera os R$ 20 milhões. Desde
que foi obrigado por uma decisão favorável ao banco a depositar R$ 7,6
milhões em juízo, em 2008, o presidente da Nestlé contesta o valor total
devido, afirmando que pagamentos parciais não foram descontados. No
começo do ano, ele conseguiu impedir com uma liminar o leilão de uma
fazenda que havia sido penhorada como garantia. “Trata-se de um contrato
antigo que sempre foi conduzido de forma transparente”, afirma Zurita.
Para empresas multinacionais, situações de pendências financeiras dessa
natureza de seus executivos são consideradas inaceitáveis. Como
presidente do conselho consultivo, Zurita diz que irá se dedicar a
avaliar oportunidades de aquisições estratégicas e estudar tendências
que impulsionem ainda mais os negócios da Nestlé no Brasil.
Ele afirma também que ajudará na transição para Marroquín Cuesta,
que deixa o México apresentando bons resultados. Assim que sentar na
cadeira de Zurita, a partir do dia 1º de julho, Marroquín Cuesta, que
está há 28 anos na Nestlé, dificilmente fará uma guinada radical na
gestão da empresa e deverá manter as estratégias formuladas por Zurita. O
consultor Eugenio Foganholo, da consultoria paulista Mixxer, afirma que
Zurita acertou ao definir algumas linhas principais que geraram a
expansão de receitas da empresa. “Antes dele, a Nestlé não tinha uma
estratégia clara; agora possui diversos caminhos, que devem continuar
sendo seguidos”, diz Foganholo. Analistas acreditam que é certa a
manutenção do investimento na classe média emergente e no modelo
bem-sucedido de vendas diretas.
"El jefe": Marroquín Cuesta (à esq.) assume a filial brasileira a partir de julho.
“Historicamente, as grandes empresas de bens de consumo voltavam-se
para as classes de renda mais alta e eram ineptas em chegar ao varejo
de bairro, o que abria espaço para as marcas talibãs”, afirma José
Lupoli Jr., dono da Lupoli Jr. & Consultores Associados,
especializada em varejo. Embora as estratégias de crescimento estejam
implantadas, a visão dos analistas é de que há um espaço para que Cuesta
melhore o controle de custos, justamente o ponto fraco da gestão de
Zurita no último ano. Segundo uma fonte próxima à companhia, a Nestlé
falhou em reduzir custos ao não adotar providências nas áreas de compra e
de logística que compensassem o aumento de preços de matérias-primas e
da mão de obra no ano passado. Essa dificuldade se refletiu no balanço
de 2011: a despeito do aumento nas vendas, o resultado operacional
piorou.
Não por acaso, em uma entrevista à CNN Expansión, do
México, Marroquín mencionou o programa mundial da multinacional de
racionalização de custos. “A iniciativa global chamada
Excelência Contínua permite economias importantes em todas as operações
da empresa, para tornar as marcas mais acessíveis aos consumidores”,
disse o futuro presidente da filial brasileira. Marroquín Cuesta vai
substituir um executivo que era considerado enérgico, focado e que
costumava ser de bom trato, embora muito personalista. Ele tampouco era
muito democrático na tomada de decisões. Costumava decidir e exigir
obediência. “Sei que posso sair daqui, se não der certo”, era uma frase
que Zurita costumava dizer. “Mas tenho certeza de que serei o último a
apagar a luz.”
Fonte: Revista Isto é Dinheiro